terça-feira, 15 de julho de 2008

A Espiritualidade Anglicana


Rev. Gerardo Jaramillo González

A Espiritualidade Anglicana está em tudo aquilo que, sendo próprio do anglicanismo, favorece, fomenta e acrescenta a espiritualidade humana. Está em tudo aquilo que sendo anglicano, melhora a sua capacidade reflexiva, a sua fé e os dons do Espírito Santo, o transcendente que existe na pessoa humana e sua relação com o transcendente, com a própria pessoa, e com as coisas que a rodeiam. São quatro as ênfases que mais se sobressaem na Comunhão Anglicana: 1. A adesão às Sagradas Escrituras; 2. A tricotomia Bispo - Sucessão Apostólica – Grande Comissão; 3. A Liturgia; 4. A Capacidade de Adaptação.
1. A primeira ênfase do Anglicanismo está nas Sagradas Escrituras. Ênfase que é comum a todas as tendências da Reforma. Isto se manifesta de mil formas, das quais destacamos a profissão de fé, que se exige a todo o anglicano, e em especial a seus ministros, assim explicitada: “Declaro solenemente que creio que as Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento são a Palavra de Deus, e que contém todas as coisas necessárias para a salvação...” (Loc. 383);
2. A segunda ênfase do Anglicanismo é essa tricotomia: Bispo – Sucessão Apostólica – Grande Comissão. A marcha da Comunhão Anglicana, Uma, Santa, Católica e Apostólica, que se dá “entre as angústias do mundo e os consolos de Deus”, gira em torno de um eixo: o Bispo. “Nele reside o poder executivo da Diocese, é o pastor principal, o guardião da fé, o símbolo da unidade, o pai da família eclesiástica da diocese. É ele o representante legal da Igreja diante do Estado, o presidente do Concílio Diocesano e do seu Conselho Executivo”. Por essa centralidade e ênfase no Episcopado é que boa parte do Anglicanismo é conhecido pelo nome de “IGREJA EPISCOPAL”. Daqui surge uma virtude que deve ser cultivada por todo bom anglicano: a obediência de Deus, a Jesus Cristo, que é quem nos lega a Grande Comissão, e ao Bispo, eixo da Igreja, legítimo sucessor dos Apóstolos, e encarregado de levar a efeito o cumprimento da missão recebida.
Dado que essa doutrina se baseia em boa parte nos Pais Apostólicos, sintetizamos tudo isso sob o título de “Patrística”. A segunda ênfase recai, então, sobre a patrística, dentro da qual se destaca o pai da configuração do episcopado: Inácio, o mártir e bispo de Antioquia. Os bispos trazem sobre os seus ombros e transmitem de geração a geração a grande comissão que é a que em síntese nos traz Mateus 28:18-20, e que diz: “Todo o poder me é dado no céu e a na terra. Portanto ide e fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-lhes a guardar todas as coisas que tenho ordenado, e eis que estou convosco todos os dias até o fim do mundo”.
3. A terceira ênfase está em sua liturgia, a qual, por sua vez, gira em torno do Sacramento Eucarístico. Aqui se inclui o Ofício Diário, a Oração Matutina, o Ofício para o Meio Dia, a Oração Vespertina diária, a grande Litania, e todas as formas de oração para leigos e clérigos. Aqui se inclui as cerimônias dos Sacramentos e dos Ritos Sacramentais de acordo com a instituição de Cristo, ou elaborados nos tempos apostólicos ou pós apostólicos sob a direção do Espírito Santo. Aqui se inclui os ritos de Celebração Eucarística, sob várias formas e as cerimônias de consagração dos bispos e os ritos de ordenação dos presbíteros e diáconos.
Por meio do Livro de Oração Comum (LOC) se administram os sacramentos, sinais externos que, conjuntamente com as formas sacramentais, conferem a graça a todos os que se convertem ao Senhor.
Fomenta-se o canto, inclusive o das diversas denominações, a piedade e as suas manifestações externas, mantendo-se, porém, sempre, a linha de uma estrutura litúrgica que nos diferencia das confissões alitúrgicas.
4. A quarta ênfase reside em sua capacidade de adaptação, ou capacidade de nascer das diversas culturas, qualidade que poderíamos sintetizar na palavra “contextualização”. O anglicanismo nasceu de um desprender-se da liturgia romana para elaborar outra que recolhera os valores dos anglos, que se contextualizaria para os ingleses. Por isso se diz que a Reforma Inglesa apontou prioritariamente para a liturgia que se incrustou nas leis do reino.
Quando essa comunhão católica chega aos Estados Unidos da América, a liturgia se volta para a cultura americana e se adapta à constituição, às leis e às idiossincrasias dos norte-americanos.
Na África, onde há nações de maioria Anglicana – mantendo-se sempre a sua essência – o Livro de Oração Comum assimila ritos e costumes da raça negra, e assim, juntamente como ornamentos, mitras e demais vestes, muitas vezes vão adornados com plumas e com a flora das nações afro.
Não é sem razão que o prefácio do Livro de Oração Comum, atualmente em uso, começa: “É uma parte muito inestimável na bendita liberdade com que Cristo nos fez livres, permitir sem ofensa alguma, diferentes formas e práticas em seu culto contanto que se conserve íntegra a essência da fé”. Aqui se expressa, como tudo o que é essencialmente anglicano, sua capacidade de adaptação, que viemos a denominar de “contextualização”.
Mas, como essas quatro ênfases contribuem para a espiritualidade anglicana? Por parte das Sagradas Escrituras, a resposta é óbvia: não há um livro entre todos os que se guardam nas bibliotecas do mundo que contribua tanto para o melhoramento da reflexão, pelas verdades que revela, que contribua tanto para a justiça e o amor, a retidão e o bom uso da liberdade por sua moral, ao crescimento da fé pelos mistérios que revela, como a Bíblia.
Os Pais da Igreja (como segunda ênfase) contribuem para o aprofundamento da espiritualidade dos anglicanos enquanto aclaram a configuração do episcopado, que vem indubitavelmente dos apóstolos, e que recebe a Grande Comissão para transmiti-la aos respectivos herdeiros da sucessão apostólica. A espiritualidade anglicana está comprometida com a Grande Comissão, que é levar, de forma missionária, “tudo que vos tenho ensinado”, toda a revelação de Jesus Cristo. Daqui se depreende que a espiritualidade anglicana inclua, definitivamente, obediência aos legítimos pastores, catolicidade, ênfase missionária e apostolicidade.
A Liturgia (terceira ênfase) influi definitivamente na espiritualidade pela oração litúrgica e extralitúrgica, que é para os leigos e clérigos, homens e mulheres, todos encontram aqui o grande meio para comunicar-se com Deus e o transcendente, e recebem os auxílios naturais que se resumem no presente da graça criada e incriada. Aqui se favorecem, fomentam e acrescentam os valores espirituais da fé e da caridade, da reflexão, da adesão ao bem, da liberdade da verdade em Cristo, da vivência da própria transcendência e o contato com o transcendente.
A quarta ênfase espiritualiza o homem enquanto encarna a Cristo em todas as nações, línguas, raças e culturas. Assim se espiritualiza cada nacionalidade com suas constituições e leis. Com a vivência de um Cristianismo assim contextualizado, tudo no homem se converte em um apêndice da espiritualidade: o corpo, a diversão, a música, o sexo, o trabalho, a geografia e a história de cada povo, na medida que tudo isso se cristifica melhora tudo o que é a espiritualidade humana.
Concluamos dizendo que quando compreendemos em que está a espiritualidade anglicana, temos de romper com o cordão umbilical das comunhões e denominações de onde procedemos.
Não podemos enfatizar as emoções por cima das convicções, nem substituir em sua totalidade nossos ritos de profundo conteúdo pelo êxtase, ou preservar as ênfases romanas em que a Sexta-Feira da Paixão predomina sobre o Domingo da Ressurreição, e onde se caminha mais com a procissão da Virgem do Carmo do que com o Pentecostes.
Enquanto não rompermos com essas ênfases do passado e de outras denominações não captaremos a espiritualidade anglicana, e nem seremos anglicanos.

Rev. Gerardo Jaramillo González

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Reforçando as Trincheiras


Dom Robinson Cavalcanti (*)

Deus escreveu sua Lei nas tábuas entregues a Moisés. Os textos históricos, poéticos e proféticos registram o Antigo Testamento. Os Evangelhos, as Cartas Apostólicas, os Atos dos Apóstolos e o Apocalipse, escritos por homens inspirados, formam o Novo Testamento. Esse conjunto compõe a Bíblia. A Revelação de Deus é escrita. Somos o povo do Livro. Ao longo da história da Igreja, dos Pais Apostólicos e Pais da Igreja aos Reformadores e Pós-Reformadores, pessoas iluminadas e comprometidas, explicaram e aplicaram a Revelação às necessidades e às conjunturas, em textos que, em conjunto, formam a tradição da Igreja, o consenso dos fiéis, legado que nos cabe preservar, atualizar e transmitir, com novos textos. Os textos bíblicos, os dos seus intérpretes ao longo dos séculos, a conjuntura dos momentos bíblicos, dos momentos dos escritores posteriores e do nosso, são dados objetivos; porém deles nos aproximamos com nossas subjetividades, condicionamentos e métodos, o que requer de cada um de nós honestidade e humildade.
Há, na vida da Igreja, lugar para a palavra falada, cantada, dramatizada, na proclamação das Boas Novas, no ensino da verdade, na conclamação à comunhão, na exortação ao serviço, e na denúncia profética aos pecados individuais, sociais e estruturais. Palavra falada que consola e exorta. Há também, na vida da Igreja, lugar para a palavra escrita, nas mesmas dimensões, com os mesmos compromissos e ministérios, sob o mesmo Espírito. A palavra falada e a palavra escrita devem estar em harmonia entre si e com as Escrituras Sagradas, que apontam para a Palavra Encarnada: Jesus Cristo, nosso Salvador e Senhor. Daí os riscos das “revelações” privadas e de textos fora do contexto, fontes de heresias e de fanatismos, descolados do Corpo. Os textos bíblicos não foram “psicografados”, nem seus intérpretes devem cumprir a sua tarefa sob transes “mediúnicos”, ou equivalentes. O senso comum e a intuição têm o seu lugar, assim como o uso instrumental dos métodos filosóficos e científicos, para uma melhor e mais acurada compreensão da Verdade. Se há uma dimensão “progressiva” da revelação, temos de ter cuidado com novos ensinos, que não foram feitos no passado de dois mil anos, por uma Igreja composta de pessoas com uma diversidade de dons e assistidas pelo Espírito Santo.
Escrever, pois, é dom, vocação, ministério e disciplina. Em cada época, a Igreja é edificada por esse ministério. O escritor é também leitor, de tudo o que se escreveu até agora e do que se está escrevendo no seu tempo. O escritor cristão não deve usar o seu texto para a promoção pessoal, mas para a honra e glória de Deus e a edificação do seu povo. Os textos escritos em outros países, com sua diversidade de história e contexto, são importantes para a manutenção da catolicidade, e o se evitar o paroquialismo e o sectarismo, mas não devem ser transplantados mecanicamente, pois sempre contêm elementos peculiares de cada cultura misturados com o núcleo do seu ensino edificante. Não podemos deixar de nos preocupar com a desproporção entre a quantidade de obras traduzidas em nossas livrarias cristãs e o reduzido número de autores nacionais (porém relevantes). Muitas vezes, eles encontram dificuldades para publicar os seus textos e a “falta de fé” dos seus próprios irmãos leitores na leitura de autores com sobrenome Silva...
Tenho estado nesse ministério há décadas, grato aos meus professores exigentes da língua portuguesa e aos meus críticos, quaisquer que sejam as suas motivações. Escrevi na imprensa secular e na imprensa religiosa, e pude, pela graça de Deus, publicar doze livros e opúsculos. Espero continuar a fazê-lo, enquanto o Senhor me der condições. Escrever sobre louvor, devoção ou doutrinas espirituais é mais leve, mas adentrar por campos do temas desafiantes do cotidiano, como a responsabilidade social, o compromisso político ou a sexualidade, significa incorrer em maiores riscos de reações. Quando se é descritivo é uma coisa, mas levantar bandeiras ou emitir opiniões pode resultar em reações positivas ou negativas, mais emocionais do que racionais. Quem não gosta, muitas vezes, no lugar de analisar a obra, ataca a pessoa do autor, tentando desqualificá-lo. Devo, na atualidade, escrever sobre os desafios que o secularismo externo e o liberalismo pós-moderno interno, com seu relativismo — inclusive ético —, e o que representam para a saúde e o futuro da Igreja. Já paguei um preço por isso. O cristianismo histórico é chamado a se posicionar, por exemplo, diante da onda pró-homossexualismo. Sobre esse tema, e relatando a violência institucional sofrida pelos anglicanos da Diocese do Recife, é que estou trazendo ao público um novo livro: Reforçando as Trincheiras (Editora Vida). Como escritores cristãos, é nosso dever participar, com nossa vocação e nossos dons, como soldados de Cristo, das batalhas espirituais e das guerras históricas, pois “viver é tomar partido”.

* Dom Robinson Cavalcanti é Bispo Anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros,